Uma das principais atrações do circuito turístico mainstream de Berlim é visitar a East Side Gallery ou, como os brasileiros a chamam: o Muro de Berlim pintado. Trata-se, na verdade, do pedaço contínuo mais extenso do que sobrou dos mais de 160km de Muro de Berlim. A iniciativa de manter quase 1,5km de muro em pé foi bastante arrojada para o ano de 1990, já que as palavras de ordem do 9 de novembro de 1989 (data oficial da queda do Muro da Vergonha) eram: “Die Mauer muss weg” (“O muro deve ir embora”). O fato é que logo no início de 1990, 118 artistas de 21 países diferentes acabaram por pintar a liberdade, a democracia, mas também ironizar as ditaduras e a repressão a elas associadas.
Obra é do artista russo Dmitri Wrubel
A obra mais visitada na East Side Gallery de tantas interessantes é uma conhecida pelos brasileiros como “O Beijo”, do artista russo radicado na Alemanha, Dmitri Wrubel. Na verdade, a pintura chama-se Mein Gott, hilf mir, diese tödliche Liebe zu überleben (“Deus, ajude-me a sobreviver a este amor mortal”) e carrega uma das mais engraçadas ironias à época da Alemanha Oriental.
Os dois homens que se beijam são conhecidos da História recente: à esquerda está um dos últimos estadistas soviéticos (1964-1982), Leonid Brejnev; à direita, Erich Honecker, último de apenas dois premiês alemães orientais (o outro foi Walter Ulbricht, homem que construiu o Muro de Berlim em 1961). A fotografia que inspirou Wrubel foi tirada por um jornalista francês, Régis Bossu, no ano de 1979. Bossu estava cobrindo o encontro de Brejnev e Honecker em Berlim e conseguiu, sem dúvida, um dos ângulos mais incríveis para o beijo dos líderes.
Não é um beijo, é um ósculo santo
E não, Brejnev e Honecker não eram homossexuais. Eles eram socialistas, fato que explica melhor essa história de beijos entre homens sem ter significado sexual. Ei-la: como símbolo de camaradagem, os russos emprestaram o ósculo (beijo) santo da igreja ortodoxa, que, por sua vez, simboliza a irmandade entre os religiosos desta igreja. Imagino que os leitores mais velhos devam se lembrar dos selinhos que os soviéticos davam em competições olímpicas. Eu, por exemplo, lembro-me muito bem dos ginastas soviéticos beijando-se depois de apresentações nota 10 nos Jogos Olímpicos de Seul (estou revelando minha idade :)) ).
Wrubel entende que o beijo é o símbolo do amor. Ele também entende que Brejnev e Honecker foram estadistas dos mais terríveis. Para se ter uma ideia, entre 1961 e 1989, quase 130 pessoas morreram tentando saltar o Muro de Berlim. Apenas estas mortes (de tantas outras) já justificam o “o amor mortal” entre os líderes em questão. Enfim: Wrubel conseguiu ser genial em sua ironia.
Há alguns anos, um povo meio desinformado e sem qualquer respeito à história e à obra em si pichou-a com a palavra “Schwul”, que em alemão quer dizer gay, homossexual. Aliás, o Muro Pintado está sendo mais uma vez restaurado devido às inscrições em canetas de diversas cores, mas indevidas como esta que citei… Ainda bem que há turistas e turistas… Há os que picham o muro e não entendem ironias. Mas há os que respeitam as obras da maior galeria de arte ao céu aberto do mundo e ainda respondem ao amor mortal de Brejnev e Honecker com beijos de amor verdadeiro, libertário e tolerante.